por António Saraiva, Presidente da CIP
Publicado no Dinheiro Vivo a 26.11.2022

Por inócuas que sejam, dada a suspensão das regras orçamentais em 2023, as apreciações da Comissão Europeia aos projetos orçamentais dos Estados-membros deixam-me apreensivo.

Espanta-me a similitude dessas apreciações. As conclusões finais são iguais, para cada um dos 10 Estados-membros que, de acordo com a Comissão, se afastam das suas recomendações. A exceção é Portugal – que “corre o risco de estar apenas parcialmente em conformidade” – enquanto os restantes nove “estão apenas parcialmente em conformidade”.

As recomendações que se seguem são, palavra por palavra, idênticas para todos estes 10 países, com situações orçamentais muito díspares. Resumem-se, na prática, a “concentrar melhor as medidas nas famílias mais vulneráveis e nas empresas expostas, a fim de preservar os incentivos para reduzir a procura de energia” – frase críptica repetida obsessivamente, mesmo para os países “em conformidade”. Só o Chipre escapa.
Ora, Portugal propõe-se reduzir o défice de 1,9% do PIB para apenas 0,9%, enquanto a Bélgica, por exemplo, com uma dívida pública muito perto da portuguesa, pretende aumentar o défice de 5,2% para 5,8%. O Luxemburgo, com uma dívida pública de apenas 25% do PIB, merece exatamente as mesmas recomendações.

A falta de critério parece evidente. A falta de coerência também.
Há poucos meses, quando os primeiros impactos da guerra se começavam a fazer sentir, a Comissão encorajava os Estados-membros a “usar uma ampla gama de medidas para amortecer os aumentos de preços, como isenções fiscais ou subsídios”.
Agora, a principal mensagem é que “este não é o tempo de providenciar mais apoios orçamentais. Isso iria aumentar a inflação e criar mais riscos aos países com dívidas elevadas”.
Esta inversão do discurso coincide, paradoxalmente, com o momento em que a mesma Comissão estima que a União Europeia como um todo e muitos dos seus membros (entre os quais Portugal) estejam a entrar em recessão técnica (no quarto trimestre de 2022 e primeiro de 2023). Neste cenário, a Comissão centra as suas preocupações exclusivamente na inflação e na sustentabilidade das finanças públicas, esquecendo por completo o objetivo de contrariar a recessão, que nem sequer é mencionado.

Já sabíamos que o Banco Central Europeu está determinado a fazer “o que for necessário” para trazer a inflação de volta à meta dos 2%, fazendo aumentar as taxas de juro, com um inevitável impacto recessivo.

Já tínhamos ouvido Christine Lagarde dizer que alguns, não todos, os países da área do euro podiam usar o seu espaço orçamental para despesa pública que ajude a lutar contra a recessão.

Ficamos agora a saber que, na opinião da Comissão, todos os governos nacionais se deverão abster de utilizar a política orçamental de forma contracíclica. Aos mais endividados, a Comissão aconselha mesmo uma política restritiva (excluindo o efeito dos fundos europeus); aos menos endividados, uma postura meramente neutra.

O atual discurso de Bruxelas preocupa-me, tanto quanto me preocupa a incapacidade para dar corpo a uma resposta orçamental europeia que permita enfrentar eficazmente esta crise.
Terá a Europa desistido de lutar contra a recessão?