por António Saraiva, Presidente da CIP
Publicado no Dinheiro Vivo, edição de 23.01.2021
Mesmo no terrível período de exceção por que passamos, o “velho normal” teima em ressurgir, incompreensivelmente, em aspetos que gostaríamos de ver afastados.
Já no início deste ano, foi publicado um decreto-lei, com assinatura do Primeiro-ministro, três ministros e uma secretária de Estado, que altera, pela segunda vez, um outro diploma, relativo ao mel.
Na sua azáfama legislativa, concluiu o Governo, implicando quatro ministérios, que as exigências sobre a rotulagem do mel não eram suficientes. Dispenso-me a mais pormenores sobre esta peça legislativa que, decerto, não entusiasmará os leitores menos versados nestas matérias. Direi apenas que o facto de o mel ser embalado em território nacional determina agora maiores exigências na sua rotulagem, relativamente ao mel importado, já embalado de origem.
Note-se que, ainda em fase de projeto, este diploma foi submetido à consulta dos membros do Conselho Nacional do Consumo. A CIP teve oportunidade de pedir que o projeto fosse abandonado, por uma questão de princípio, uma vez que dele decorria um tratamento discriminatório para produtos com maior valor acrescentado nacional. Chamava ainda a atenção para a redação objetivamente inadequada de um dos artigos, que se mantém na versão final, levantando justificadas dúvidas sobre a atenção que foi dada a esta auscultação.
Perguntar-me-ão o porquê desta minha preocupação com um decreto-lei sobre a rotulagem do mel. No momento que atravessamos, não haverá temas mais relevantes a tratar, problemas mais importantes a solucionar?
Os agentes económicos afetados limitar-se-ão a lamentar mais uma peça de legislação descabida no seu conteúdo e mal redigida na sua forma, encomendarão, se necessário, novos rótulos, e a vida prosseguirá.
A questão é que este é mais um exemplo de uma postura errada do Estado.
É um exemplo de um Estado que, ao mesmo tempo que elege como prioridade a simplificação legislativa e a remoção de entraves ao exercício da atividade económica, continua, na prática, a legislar deficientemente, a acrescentar “pedras na engrenagem”, que vão entravando o funcionamento das empresas, absorvendo tempo e aumentando custos.
É o exemplo de um Estado que diz proteger a produção nacional e continua a praticar o designado “gold plating”, indo além do que o que a legislação europeia prescreve e prejudicando assim a competitividade das empresas portuguesas.
É o exemplo de um Estado que, com a melhor das intenções, cria múltiplos mecanismos de auscultação e de avaliação de impacto normativo, para depois, ostensivamente, os ignorar.
Procuremos, pois, soluções para os grandes problemas que afetam a nossa economia, mas não deixemos de olhar para o dia-a-dia das empresas, de todos os setores. Não deixemos de denunciar as pequenas ou grandes “pedras na engrenagem” que, cumulativamente, têm sido, provavelmente, o principal constrangimento a um desenvolvimento sólido e sustentado do nosso país.