Entrevista com Alexandre Affre Diretor da Comissão de Assuntos Industriais da BusinessEurope

 

A Comissão Europeia divulgou uma nova Estratégia Industrial, que tem como objetivo apoiar a indústria na sua transformação digital e, ao mesmo tempo, disponibilizar ferramentas que permitam às empresas fazer a transição para a neutralidade carbónica.

Em entrevista à revista Indústria, Alexandre Affre, diretor da Comissão de Assuntos Industriais da Confederação de Empresas Europeias, BusinessEurope, nota que a estratégia agora apresentada assenta, principalmente, em iniciativas futuras, não fornecendo, no entanto, muitas pistas sobre como atingir os objetivos propostos.

Apesar disso, reconhece a dedicação da Comissão à estratégia agora apresentada, nomeadamente a criação de indicadores-chave de desempenho com o objetivo de monitorizar o progresso na implementação.

 

A Comissão Europeia apresentou recentemente a nova estratégia industrial para a Europa. Que avaliação faz deste documento?

A nova estratégia industrial era aguardada há muito, pois faz a ligação da indústria da União Europeia (UE) à ambição do Pacto Ecológico (“Green Deal”). A indústria é a espinha dorsal da economia europeia, representa mais de 20% da economia da UE e emprega cerca de 35 milhões de pessoas.

O papel que a estratégia antecipa para a indústria, nomeadamente, ser o líder da transição verde e digital “transição dupla”, é algo que nos agrada. A estratégia reconhece o facto de a indústria necessitar de um correto enquadramento para permanecer competitiva. Portanto, é positivo que a Comissão Europeia esteja a analisar as regras de concorrência.

O verdadeiro valor da estratégia industrial será determinado pela aplicação de medidas concretas pela Comissão. Desde 2005, pelo menos cinco estratégias industriais foram publicadas, com impacto insuficiente, portanto o verdadeiro desafio será realmente fazer a diferença desta vez. Consideramos positiva a dedicação da Comissão à estratégia, pois apresenta um conjunto de indicadores-chave de desempenho [na sigla inglesa KPIs-key performance indicators] para monitorizar o progresso na implementação. Além disso, a Comissão criará ainda um “Fórum Industrial” inclusivo, com representantes de vários stakeholders, Estados-membros e instituições da UE, para apoiar a Comissão na análise dos vários riscos e necessidades da indústria.

Em termos de conteúdo, a estratégia consiste principalmente em iniciativas futuras. Aborda alguns desafios com os quais a indústria se depara atualmente, mas fornece poucas pistas sobre como atingir os objetivos a que se propõe. Por exemplo, a estratégia reconhece a necessidade de a indústria garantir um abastecimento seguro de energia limpa e a preços acessíveis, mas não adianta soluções sobre como alcançá-lo. O mesmo acontece com as matérias-primas. Uma vez que são componentes chave para muitos produtos usados em aplicações de tecnologia de ponta e tecnologias com uma baixa emissão de carbono (eletrónica, produção de energia renovável, indústria automóvel etc.), existe uma corrida crescente em todo o mundo para garantir o acesso a matérias-primas críticas. A estratégia inclui a elaboração de um plano de ação sobre matérias-primas críticas, mas não fornece nenhuma indicação sobre como lidar com o problema.

 

Que pilares da estratégia industrial considera mais desafiantes para as empresas e para a UE?

Cumprir a estratégia dependerá da combinação certa de medidas e, igualmente importante, de uma forte vontade política de agir. Os desafios são bastante complexos e não podem ser resolvidos com apenas uma ou duas medidas. Tomemos como exemplo o objetivo de alcançarmos um continente com impacto neutro no clima até 2050. As empresas europeias estão totalmente solidárias com este objetivo da UE. No entanto, na ausência de ambições comparáveis por parte dos nossos principais concorrentes globais, corremos o risco de ver o carbono e o investimento fugirem para localizações mais atrativas. Um mecanismo de ajustamento das emissões de carbono nas fronteiras [na sigla inglesa, CBACarbon Border Adjustment] está a ser atualmente discutido precisamente para resolver esse problema. Um CBA pode funcionar para alguns setores, mas não pode ser visto como a solução mágica.

O reforço dos instrumentos existentes, como licenças gratuitas e auxílios estatais para custos indiretos no regime de comércio de licenças de emissões, será decisivo. Os riscos de fuga do carbono e do investimento, para fora da Europa não estão, na nossa opinião, adequadamente abordados. O mesmo acontece com a concorrência desleal e as distorções de mercado. Estes desafios precisam de ser abordados em todas as frentes.

As condições equitativas de concorrência tornaram-se uma questão crítica porque as empresas europeias enfrentam, cada vez mais, situações de concorrência desleal em várias partes do mundo. Muitas das distorções decorrem da existência de subsídios estrangeiros e da atuação de empresas estatais. A iniciativa de desenvolver uma ferramenta para lidar com estes subsídios estrangeiros e mitigar práticas de empresas de países terceiros, fortemente subsidiadas, que distorcem o mercado, é um passo na direção certa. Mas esperávamos um compromisso mais forte da Comissão Europeia para a abertura de mercados estrangeiros.

 

Qual deve ser o posicionamento da UE em relação às cadeias de valor globais? Como é que as empresas europeias podem criar valor, diferenciando-se dos seus concorrentes globais?

Uma característica essencial da indústria da UE é a sua incorporação nas cadeias de valor globais. Muitas empresas europeias posicionaram-se em segmentos de alto valor acrescentado, onde a inovação é crucial para manter a sua posição no mercado e a sua vantagem comparativa. Países europeus, especialmente os de menor dimensão com uma forte base industrial, beneficiaram bastante destas oportunidades. Por isso mesmo, a UE precisa de continuar a defender os regimes de livre comércio e de comércio multilateral, mesmo que as tensões no comércio internacional estejam a aumentar.

Por outro lado, as preocupações relativas à excessiva dependência europeia face a países terceiros, em setores estratégicos, estão a aumentar e isso mesmo está refletido, também, na estratégia industrial, num capítulo dedicado ao “reforço da autonomia industrial e estratégica da Europa”.

É importante fortalecer as capacidades tecnológicas europeias, aproveitando os seus pontos fortes em áreas onde a engenharia e as tecnologias de informação se interligam (robótica, a Internet das coisas industrial, as aplicações inteligentes etc.), além de explorar aplicações de nicho em setores estratégicos. Além disso, a Europa está a tentar fortalecer a sua base industrial, estabelecendo cadeias de valor estratégicas ou “alianças industriais”. Um exemplo muito importante é o da Aliança Europeia para as Baterias.

A nova estratégia europeia prevê agora a criação de alianças industriais também para o hidrogénio limpo, indústrias de baixo carbono, clouds e plataformas industriais e matérias-primas, de forma a que a Europa consiga manter-se competitiva nas tecnologias chave. Se as condições e os incentivos para o investimento em tecnologia, a longo prazo, forem estabelecidos agora, as empresas europeias estarão na vanguarda da inovação e terão condições para prosperar globalmente.

 

*artigo publicado no nº 123 da Revista Indústria. Veja aqui toda a revista.