por António Saraiva, Presidente da CIP
Publicado no Dinheiro Vivo a 10.09.2022

 

Foi completamente extinta, no passado dia 1, uma das mais preciosas pérolas da burocracia portuguesa. Em boa verdade, deixou de ser obrigatória desde o princípio deste ano, mas só agora deixou pura e simplesmente de existir.

Estou a falar do Livrete Individual de Controlo (LIC), de seu nome completo “Livrete individual de controlo para pessoal afeto à exploração de veículos automóveis e para trabalhador móvel não sujeito ao aparelho de controlo no domínio dos transportes rodoviários”. Servia para registar o número de horas de trabalho prestadas, incluindo horas de início e termo da jornada diária de trabalho, devendo indicar também os intervalos de descanso e descansos diários e semanais.

De acordo com o diploma de 2007 que lhe deu origem, tinha características bem precisas, incluindo 84 folhas diárias numeradas e 12 relatórios semanais numerados. Tinha de ser autenticado pela Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), prevendo-se “selo branco e chancela”. Poupo ao leitor mais detalhes, mas não resisto a referir que só era “autenticado novo livrete desde que se mostrem preenchidas, pelo menos, 60 folhas diárias do livrete anterior em uso”.

Destinava-se, genericamente, aos trabalhadores “afetos à exploração de veículos automóveis” propriedade de entidades sujeitas às disposições do Código do Trabalho, desde que não sujeitos ao tacógrafo. Esta descrição sempre deu origem a dúvidas e equívocos, mas era interpretada pela ACT e pelos tribunais de forma muito abrangente. A falta do LIC, recorde-se, era contraordenação muito grave: o legislador não fez por menos.

Este LIC não nasceu de geração espontânea: era descendente direto de uma caderneta pormenorizadamente descrita numa Portaria de 1962, assinada pelos então ministros das Comunicações e das Corporações e Previdência Social. Os tempos mudaram, a burocracia aprimorou-se e esta portaria de 1962 só foi formalmente revogada no dia 1 de janeiro deste ano.

A subsistência do LIC foi classificada, já no quadro do primeiro Simplex, como exemplo de uma situação absurda e obsoleta, tendo sido assegurado, nessa época, que seriam tomadas medidas para a sua eliminação. Foi apresentado, novamente, como custo de contexto a ser eliminado no Simplex 2016. Ao fim de mais seis anos, foi finalmente substituído por formas alternativas de registo. Embora apenas para algumas situações, haverá agora um sistema informático para publicidade dos horários de trabalho, com especificidades que em nada ficam a dever ao LIC e à caderneta de 1962.
Infelizmente, subsistem outras pérolas no largo tesouro da nossa burocracia. Mais grave ainda, continuam a surgir novos procedimentos e exigências que vão alimentando a carga administrativa que pesa sobre as empresas.

Multiplicam-se exemplos de um Estado que, ao mesmo tempo que elege como prioridade a simplificação legislativa e a remoção de entraves ao exercício da atividade económica, continua, na prática, a legislar deficientemente e a acrescentar “pedras na engrenagem” que vão entravando o funcionamento das empresas, absorvendo tempo e aumentando custos.
Pelo simbolismo, celebremos então a extinção do LIC, uma pequena batalha ganha a custo na luta contra a burocracia.