Jorge de Melo assumiu a liderança da Sovena em 2018. Em entrevista à revista Indústria, o empresário destaca o papel das grandes empresas, enquanto criadoras de emprego e geradoras de riqueza para o país, e defende o aumento do seu peso no acesso direto aos fundos europeus. Do Estado, diz que deveria ser um facilitador de processos de inovação, enquanto legislador e pela via fiscal, mas também através da Educação, estimulando, desde os primeiros anos de vida, a pensar de forma diferente e criativa.

A transição digital e a sustentabilidade ambiental são dois grandes desafios que se colocam atualmente às empresas portuguesas e que foram já assumidos pelo grupo Sovena. Que projetos estão a desenvolver nestas áreas?
Na Sovena procuramos permanentemente identificar e adotar as melhores práticas em toda a nossa cadeia de produção de forma a garantir o alinhamento da cadeia de abastecimento dos nossos produtos.
Aliás, o posicionamento recentemente assumido pela marca corporativa Sovena pretende refletir a sua capacidade de reinvenção constante e a sua visão perante o futuro da alimentação global. Este novo posicionamento refletido na assinatura ‘Feeding Futures’, tem na inovação – com as melhores práticas e uma procura contínua de inovação ao nível do produto, packaging e negócio – o principal drive de crescimento.
Ao nível da produção a nossa aposta passa pela transformação digital. As áreas em que nos estamos a concentrar são a digitalização das operações das unidades industriais para processos de compras, gestão de laboratório, qualidade, produção e controlo de stocks e otimização dos processos de planeamento de produção e da cadeia de abastecimento.
No que respeita à área da sustentabilidade, estamos a finalizar o Plano e a Estratégia de Sustentabilidade para os próximos três anos revisitando todos os temas de uma forma transversal a todas as áreas de negócio. Pretendemos alinhar os novos objetivos numa lógica que privilegie a valorização do impacto da nossa atividade nos ecossistemas, nas pessoas e nas comunidades e, naturalmente, no nosso negócio. Estamos a definir compromissos, objetivos e metas claros e partilhados por todos, para as áreas de sustentabilidade que identificámos como prioritárias. Para lhe dar um exemplo, desde 2019, que o PET reciclado foi assumido como uma prioridade para a Sovena: fizemos a incorporação de 28% de plástico reciclado que nos permite substituir, até 2025, mais de três mil toneladas de plástico virgem.

Quais as principais dificuldades que sentem no desenvolvimento destes processos?
São processos que nem sempre são rápidos de implementar, pelo menos o quanto gostaríamos. Estamos a falar de adaptações que implicam não só investimentos, mas adequação de processos, pelo que a rapidez é inimiga da qualidade de implementação. Mas, numa empresa como a Sovena, é preciso esta ambição e perseverança de não desistir perante as adversidades. Foram estas características que nos trouxeram até aqui e ser hoje uma empresa que atua em todas as fases da cadeia de valor.

Qual a avaliação que faz do papel do Estado, enquanto obstáculo ou facilitador de processos de inovação? Sobram barreiras e faltam incentivos? Quais?
Não acredito numa sociedade em que cabe ao Estado o papel central na inovação. A inovação deverá estar em tudo o que se faz e deverá ser transversal numa sociedade moderna. Nessa medida, ao Estado cabe a função de facilitador dessa mesma inovação. Caberá ao Estado, por exemplo, a função de estimular, desde os primeiros anos de ensino, a pensar de forma diferente e criativa, não criando barreiras e pré-conceitos. Só assim as Instituições de Ensino funcionarão como alimentadores de recursos humanos criativos, resilientes, com capacidades de adaptação perante grandes desafios. Só assim teremos perfis qualificados em áreas mais técnicas/ tecnológicas e que, a prazo, se constituam como incubadoras naturais de startups, por exemplo.
Contudo, a meu ver, cabe ainda ao Estado, numa ótica de facilitador/legislador criar alguns incentivos diretos mais relevantes do que os que atualmente existem, de forma a terem um impacto real a curto prazo. Este aspeto poderá, no dia-a-dia das empresas, ajudar a promover processos de inovação.

Sabemos que os empregos do futuro serão diferentes, mais digitais, mais flexíveis, mais globais. Qual é o papel das empresas nesta transição? E que papel cabe ao Estado?
As empresas precisam de estar atentas aos sinais que os colaboradores vão dando e estar abertas a aceitar essas mudanças. Na Sovena já estávamos a alinhavar algumas políticas nesse sentido, em que a pandemia veio ter um efeito acelerador. O Estado tem de criar as condições legais e regulamentares para que isso aconteça.

Quais os principais constrangimentos que se colocam atualmente ao desenvolvimento da atividade empresarial em Portugal?
Importa, em primeiro lugar ter noção que, em termos genéricos, Portugal é um mercado periférico com um tecido empresarial subdimensionado e presente sobretudo em atividades de baixo valor acrescentado. A este cenário acrescem os constrangimentos naturais e já conhecidos, como são a falta de escala e a ausência de um mercado interno relevante.
Perante este cenário, resta-nos como alternativa trabalhar mais e melhor o desenvolvimento de competências, sobretudo de novas tecnologias; tirar melhor partido da estabilidade política e social; melhorar a agilidade do enquadramento jurídico e simplificar a carga burocrática. Adicionalmente, um enquadramento fiscal que promova o investimento e ajude a influenciar a escolha de Portugal para sedear investimento poderia ter um impacto positivo, pelo menos não desincentivando o investimento corporativo e individual face a outras geografias.
Sendo certo que parecemos poder estar a caminhar no sentido da uniformização fiscal ao nível europeu, existem ainda algumas assimetrias mesmo dentro das geografias “não agressivas”. Não existe no País a convicção que é fundamental o Estado colaborar com os empresários, e ajudá-los na libertação das amarras da burocracia. O legislador não tem noção das necessidades dos empresários e gestores, nem dos constrangimentos que estes têm no seu dia a dia. Se tivessem essa noção diminuiriam o nível de burocracia com as necessidades intermináveis de licenças que levam muitas vezes os empresários a desistirem.
A ausência de um verdadeiro mercado de capitais e a concentração de financiamentos na intermediação bancária configura outro constrangimento sério ao investimento e à atividade empresarial no País. Ao que se alia a ausência de cultura empresarial e a aversão ao risco. Características que poderiam e deveriam ser contrariadas desde muito cedo nos bancos das escolas, por exemplo.

É difícil ser empresário em Portugal? Porquê?
Eu dira que não é fácil até pelas razões acima elencadas. Só com muita resiliência e perseverança se aposta e se investe em Portugal. Nesta medida, estou convicto de que há espaço para melhorar e estou nesta atividade para criar valor para o meu País.

O contexto pandémico veio somar novos desafios aos existentes. De que forma a Sovena de adaptou a esta nova realidade?
O último ano e meio ensinou-nos que eventos que nos poem à prova acontecem em todo o lado, até à escala global. Isto deve-se à inevitabilidade do risco, que qualquer empresário tem de enfrentar, e à responsabilidade de estar lado a lado com dezenas, ou centenas, de outros colaboradores que dele dependem.
Nesta medida, aquando do alerta de pandemia por parte da Organização Mundial de Saúde foram imediatamente implementados planos de contingência, de segurança para as equipas das fábricas e de preparação para o teletrabalho para aqueles que desempenham funções nos escritórios.
Esta pandemia veio demonstrar que é necessário ter retaguardas logísticas asseguradas. No nosso caso, o facto de termos três unidades industriais em Espanha e duas em Portugal foi a vantagem que permitiu à Sovena responder aos desafios imediatos que resultaram desta situação. A Sovena procurou também apoiar os profissionais de primeira linha, e todas as pessoas que, por se encontrarem em situação de fragilidade, estão também mais expostas às consequências do vírus.
Elaborámos um plano de apoio à Rede de Emergência Alimentar, uma iniciativa estruturada a partir do Banco Alimentar de Portugal que visa levar alimentos a quem deles mais carece.

Como projeta o “novo normal” para as empresas portuguesas?
O mundo mudou. E o futuro será de adaptação, mas, espero, que seja também uma oportunidade para colocar em práticas as muitas lições que retirámos do último ano. Acredito que as empresas vão ter de ser mais flexíveis em todo o seu modo de funcionamento, relação com clientes e fornecedores, mais agressivas na procura de mercados internacionais, e sobretudo na procura de ganhar dimensão que lhes permita ultrapassar os tempos mais turbulentos que possam viver no futuro.

Perante a atual crise económica, a União Europeia assumiu um pacote financeiro no valor de 1,8 biliões de euros até 2027. Qual a avaliação que faz da resposta europeia e das prioridades de investimento assumidas?
Foi uma reação rápida e bastante adequada à natureza da crise atual. Contudo, há dois aspetos muito importantes a considerar: em primeiro lugar as consequências que terá no futuro o endividamento das economias, nomeadamente o rating e o custo de capital e, em segundo lugar o grau de liberdade dado aos governos para definirem o peso do Estado nos diferentes planos. No caso português, o Estado terá um peso de 66%. A meu ver é um excesso.

Preocupa-o a aplicação destes fundos em Portugal?
Creio que ainda há bastantes detalhes por esclarecer sendo que a aplicação destes fundos no dia-a-dia deverá ser mais clara. Contudo, estou mais convencido dos méritos do incentivo à atividade económica através da baixa de impostos e/ou criação de deduções diretas de impostos ao investimento. Se é um desígnio estratégico do País dinamizar determinadas áreas, nomeadamente a transição energética e sustentabilidade, faria mais sentido fazer uma discriminação positiva em termos de impostos/deduções. Mas houve entendimento diferente e, infelizmente, podemos estar a criar um monstro burocrático com impactos duvidosos na dinamização da atividade económica com custos que teremos de pagar seguramente mais tarde.
Acredito que as empresas estão no centro do círculo virtuoso da criação de riqueza. No entanto, a quase totalidade dos fundos de acesso direto destinados às empresas são exclusivos para as PMEs que, embora componham a maioria do tecido empresarial, não têm a escala necessária para, por si só, fomentar um crescimento económico como o que se ambiciona. Por outro lado, importa salientar que, mesmo as empresas de maior dimensão ao nível nacional, quando vistas à escala global, são de reduzida dimensão, dificultando a competitividade do País à escala internacional.
As grandes empresas em Portugal, ao contrário do senso comum, são responsáveis por grande parte da criação de postos de trabalho, geram riqueza em si e nas economias em que estão inseridas pelo seu efeito multiplicador e, são uma importante fonte de receita fiscal. Por isso mesmo defendo iniciativas que fomentem o crescimento de todas as empresas, independentemente da sua dimensão, pois não só reforça a capacidade competitiva do País ao nível internacional, como gera oportunidades para todos, incluindo para as PME’s nacionais, criando um verdadeiro ambiente de crescimento sustentado e profícuo para todos, criando um verdadeiro círculo virtuoso. São importantes por isso iniciativas direcionadas às empresas e que incentivem a colaboração e criação de escala, fomentando também movimentos de fusões e aquisições, para que Portugal consiga prosperar internacionalmente.
A agricultura e as indústrias alimentares têm um peso muito significativo na economia nacional e têm demonstrado uma resiliência extraordinária aos desafios do último ano. Contudo, e para que isto continue a ser possível, precisamos de medidas mais concretas que reforcem a capacitação de profissionais na utilização de ferramentas e tecnologias inovadoras. Estas, aliadas a medidas que continuem a promover o investimento em ciência e tecnologia digital, vão permitir ao setor agrícola e às indústrias alimentares continuar a crescer e atrair novos profissionais.

Acha que há demasiado Estado na economia portuguesa?
Sim, sempre tivemos Estado a mais. Quando se tentou reduzir o papel do Estado tivemos algumas dificuldades em estabelecer reguladores fortes e independentes, o que se reflete num Estado pouco exigente.
O papel do Estado na esfera económica tem sido negativo sempre que se assume como empresário (nacionalizações, defesa de empresas caducas, etc.).
Numa perspetiva económica, podia ser muito melhor se concentrasse os seus recursos exclusivamente na criação de infraestruturas físicas ou outras; no seu papel de regulador verdadeiramente eficiente e na educação.
Os incentivos devem continuar a acontecer, mas não através da insistência permanentemente nos apoios financeiros e fiscais e no apoio direto ao investimento. Por exemplo, o controlo das despesas públicas com reformas estruturais e redução da taxa normal de IRC, traria um incentivo muito mais sustentado ao investidor.
O verdadeiro incentivo traduz-se em redução do custo de capital para a análise de investimento das empresas que queiram investir em Portugal (neste aspeto, importante é também a atenção ao rating da república). Mas, obviamente, que precisamos também de reduzir alguns obstáculos, como a corrupção e o excesso de burocracia.