por António Saraiva, Presidente da CIP
Publicado no Dinheiro Vivo a 11.03.2023
A evolução dos salários continua a fazer correr muita tinta num momento em que o aumento dos preços está a corroer o poder de compra dos trabalhadores.
Sabemos que o choque que fez disparar os preços tem origem externa e está, incontornavelmente, a fazer-se sentir sobre trabalhadores e empresas. A questão é saber qual a margem existente para aumentar salários, sem pôr em causa a sobrevivência das empresas e sem alimentar espirais salários-preços. Trata-se de um equilíbrio delicado, tal como tem alertado a Comissão Europeia, apelando a uma “calibração” dos salários que apoie o poder de compra dos trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, ajude a aliviar a pressão sobre os preços.
Por outro lado, também tem havido alertas para evitar que as subidas de preço façam aumentar os rendimentos das empresas à custa da perda do poder de compra dos trabalhadores. Entre nós, o Governador do Banco de Portugal defendeu que “tal como o crescimento dos salários deve ser limitado, as empresas deverão limitar as margens de lucro para que a inflação não continue a acelerar”.
Uma boa maneira de aferir se esse sensível, mas possível, equilíbrio está a ser conseguido é olharmos para a repartição da riqueza gerada pela economia entre remunerações do trabalho e do capital.
Aliás, foi este o ponto de partida do Acordo de Competitividade e Rendimentos assinado em outubro do ano passado: “convergir com a média da União Europeia no peso das remunerações no PIB até 2026”.
A este respeito, foi afirmado num reputado jornal, que, em 2022, teríamos a “maior transferência de rendimentos do trabalho para o capital do milénio (4,7%), muito superior à do desastre socioeconómico da troika”. Esta afirmação continua a ser repetida, sendo esgrimida como argumento para defender que há espaço para substanciais aumentos salariais em 2023.
O Eurostat revelou, esta semana, dados relativos a 2022, que nos permitem aferir que esta suposta evidência é, objetivamente, falsa.
Em Portugal, o peso das remunerações do trabalho no PIB reduziu-se, de facto – de 47,9%, em 2021, para 47,1%, em 2022 – mas continua alinhado com a média europeia – 47,0%.
Por outro lado, o peso dos outros rendimentos gerados pela produção também diminuiu – de 39,7%, em 2021, para 39,0%, ao contrário da média europeia, que subiu para 41,9%. 39% é o valor mais baixo desde, pelo menos, 1995.
Em contraponto, está o aumento de uma terceira parcela: os impostos indiretos (líquidos de subsídios), cujo peso no PIB passou, em Portugal, de 12,3% para 13,9% (na média europeia foi, em 2022, de 11,2%).
Concluo, portanto, que, em Portugal, a inflação está a penalizar, praticamente na mesma proporção, trabalhadores e empresas, enquanto beneficia as finanças públicas.
Concluo, também, que o objetivo de convergência com a Europa do peso das remunerações do trabalho no PIB foi atingido em 2022, tal como o tinha sido, aliás, em 2021.
É bom estarmos atentos à realidade dos números para contrapor ao que, facilmente, vai passando, sem fundamento, para a opinião pública.