por Armindo Monteiro, Presidente da CIP
Publicado no Dinheiro Vivo a 13.05.2023

O PRR teria inevitavelmente de ter uma forte componente digital. Nasceria caduco se assim não fosse. Preocupam-me, no entanto, vários aspetos do plano desenhado pelo Governo. A principal dúvida salta à vista: a divisão do bolo atribui, grosso modo, 50% ao Estado, 25% às escolas e apenas o que sobra às empresas – e nem tudo diretamente. Parece-me uma divisão obviamente errada que sofre da habitual estatização da economia portuguesa com todos os riscos que isso implica.

Uma parte dos fundamentos da famosa bazuca está, portanto, errada – e, infelizmente, já não há muito a fazer. Há ainda um outro pecado original. O nome de batismo desta poderosa iniciativa europeia (Plano de Recuperação e Resiliência) revela os objetivos talvez demasiado modestos face aos montantes envolvidos – em Bruxelas foram mais ousados, chamam-lhe NextGenerationEU. A nossa escolha ficou obviamente aquém. Não chega. Dar mais capacidade de resistência à economia pode ser bom, mas também é curto. A mudança estrutural que Portugal anseia há demasiado tempo exigiria uma marca mais forte capaz de dar sentido e mais impulso a este repto nacional. Não sabemos quando haverá outro pacote de financiamento tão robusto, talvez nunca, não é?, então que apontemos para a lua e não para o meio do chão.

Estar à altura das circunstâncias é realmente uma obrigação. Neste sentido, identifico outro bug no PRR. Faz todo o sentido modernizar o Estado, criar interfaces digitais rápidos e modernos. No entanto, se a escolha for apenas transformar o que hoje existe para dar resposta ao velho mundo analógico, então a modernização serve para pouco. Decalcar procedimentos sem os alterar profundamente é totalmente errado.

A revolução digital é, antes de mais, uma revolução de comportamentos: exige que os pontos de partida e os procedimentos sejam completamente repensados e redesenhados. Não chegaremos a um sítio muito diferente se o ponto de partida e as etapas do caminho não forem também elas diferentes. Se a empresa X continua a ter de percorrer digitalmente cinco direções-gerais, dez câmaras municipais e mais uma mão-cheia de organismos e ainda tem de obter uma dúzia de pareceres, consultas e aprovações… então isso significa que a torre de papel continua a reinar na nossa economia.

Qualquer especialista desta área sabe-o: as mudanças digitais são, antes de mais, alavancas que dão corpo e incentivam mudanças profundas na forma de pensar, fazer e decidir. Não é uma reunião por Teams com uma entidade pública que nos transformará no novo Vale do Silício global. A grande mudança que a tecnologia concretiza é a mudança conceptual.

Se o Estado continuar tão desconfiado e cético como ainda é hoje – apesar de ligeiras melhorias -, e se continuar ontologicamente kafkiano, então é inevitável que, apesar de alguma evolução, o potencial da revolução digital do PRR fique em grande medida pelo caminho. A casa não se constrói pelo telhado. As fundações são essenciais. Receio que não pensámos nelas o suficiente e que, portanto, todo este investimento – e ele é de facto muito relevante por acontecer num curtíssimo período de tempo – estar a ser em grande medida desperdiçado ou, pelo menos, não potenciado. O Estado de tijolo e cimento está a desaparecer. Ainda bem. Mas os nossos planos centrais de arquitetura e engenharia continuam a ser os antigos: pesados, burocráticos e desconfiados.

Uma última nota: se a dotação dirigida às empresas no quadro da transformação digital já era, à partida, escassa, os atrasos que se verificam na sua execução contrariam as expectativas face à capacidade do PRR de acelerar a transformação digital. Penso, no entanto, que é de elementar justiça deixar claro que na generalidade dos concursos abertos a resposta das empresas tem sido forte. Nesta dimensão, como de forma global, ao contrário do que receava o Governo, os principais problemas na execução do PRR não surgem do lado da procura, aparecem do lado da máquina administrativa que, como se diz nos inquéritos, não sabe ou não responde. Olha que surpresa analógica.