por Armindo Monteiro, Presidente da CIP
Publicado no Dinheiro Vivo a 19.08.2023

A excessiva carga fiscal imposta pelo Estado levou os contribuintes a comportarem-se cada mais como clientes de um serviço – embora a palavra cliente seja interpretada por alguns de forma negativa já que, de acordo com esta perspetiva anacrónica, subtrai valor à ideia de cidadania. O cidadão é, para eles, utente, apenas utente, exclusivamente utente – e jamais cliente – a quem é prestado um favor.

Esta espécie de pudor linguístico tem tudo a ver com a ideia de que ao falarmos em clientes estaríamos a mercantilizar um dos aspetos fundamentais da dimensão de cidadania: o acesso universal e gratuito – tendencialmente gratuito – a serviços públicos tão essenciais nas nossas vidas como a saúde ou a educação públicas.

Apesar de compreender algumas (só algumas) destas reticências, penso que se trata apenas de um excesso de zelo ideológico. Hiperboliza-se o receio de que os privados tomem o lugar do público na prestação destes serviços, enfraquecendo definitiva e irremediavelmente o Estado. Embora não seja este o assunto sobre o qual me quero debruçar – ficará para outra ocasião -, sublinho apenas que estamos a muitas galáxias de distância de isso poder acontecer em Portugal sob todos os pontos de vista. Não vale a pena incentivar uma revolta por causa de um assunto que não o é nem está perto de o ser.

O que realmente me parece ser assunto é a nossa relação com o Estado – somos hoje cidadãos-contribuintes ou cidadãos-clientes? Dito de outra maneira: a aliança entre o cidadão e o fisco, baseada no princípio do consentimento consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, sofreu uma profunda alteração ao longo dos últimos anos. Insere-se agora num ambiente marcado por uma rápida metamorfose do Estado e, de modo mais geral, também do setor público.

Se olharmos com atenção, verificamos que a natureza e raiz, digamos, política do cidadão-contribuinte está a desvanecer-se e a fundir-se com a natureza – conceptualmente mais económica – de cliente. Assistimos, portanto, a uma evolução caracterizada por um enfraquecimento (ou até por um questionamento de fundo) da essência política da fiscalidade e, portanto, da ligação entre cidadania e fiscalidade. À medida que os impostos sobem e ao mesmo tempo que, paradoxalmente, alguns serviços dão sinais de fragilidade ou até de rutura, as pessoas tendem a não apenas contar com determinado serviço, mas passam a exigir que esse mesmo serviço seja prestado com mais qualidade.

Não é nade de grave, pelo contrário. O sentido de exigência é fundamental para que possamos evoluir coletivamente. Se nos consideramos clientes do SNS ou clientes das escolas e universidades que os nossos filhos frequentam, isso não apenas reforça a legitimidade dos impostos – laço e cimento centrais para a vida em comunidade -, como também coloca uma pressão competitiva benigna no sistema, impelindo-o a oferecer as melhores condições aos seus cidadãos-clientes. Vale a pena lembrar que o cidadão-cliente satisfeito…volta sempre.