por Armindo Monteiro, Presidente da CIP
Publicado no Dinheiro Vivo a 09.09.2023

O retrato que Eça de Queiroz fazia do país, do seu passado e presente, era demolidor, embora dolorosamente real. Em certos aspetos, essa aguarela permanece atual: “Fomos outrora o povo do caldo da portaria (…), da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exatamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. (…) Este caldo é o Estado. Toda a nação vive do Estado. (…) Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude no nosso interesse.”

O caldo da portaria não acabou. Para quem não conhece a referência feita pelo Eça, a portaria referia-se à entrada dos conventos onde, num país afundado na pobreza e na miséria, era costume os conventos dividirem o que tinham pelos que não tinham coisa nenhuma: faziam uma sopa e partilhavam-na. Chamava-se a isso “o caldo da portaria”. Era o que hoje conhecemos como de “a sopa dos pobres”.
Escreve o Eça. “O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó. (…) Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro (…)”

Os hábitos são difíceis de combater. Os tempos mudaram, é verdade, o país está melhor, a pobreza diminuiu, embora ainda esteja muito longe de ser resolvida – de acordo com o Barómetro Europeu sobre Pobreza e Precariedade, revelado esta semana, cerca de 50% das pessoas não têm capacidade para pagar as despesas mensais. Não estamos a falar da pobreza cruel do século 19 ou da que se manteve em grande parte do século passado; ainda assim, o problema subsiste. A existência de uma rede de proteção social razoavelmente presente atenua o problema, que deixou de ser tão pungente; mas a pobreza, mesmo com outra expressão face ao antigamente, permanece um ferida aberta intolerável.

Não é, no entanto, a esta pobreza a que me quero referir, menos ainda dos apoios sociais que considero obviamente fundamentais: um país que não protege os mais desfavorecidos e não lhes dá voz está condenado ao fracasso. Este apoio justificado não tem nada a ver com a sopa dos pobres: não é caridade, é solidariedade. Mais do que isso, é dever de todos, incluindo do Estado.

O recipiente da gamela em que estou a pensar é, paradoxalmente, o próprio Estado português. A classe que vivia encostada ao erário público deu lugar a um Estado que vive, ele próprio, de mão estendida a Bruxelas. Por vezes, até parece que o nosso único desígnio é sermos elegíveis para o próximo quadro de apoio comunitário. Somos beneficiários da União Europeia desde a nossa adesão e não definimos como prioridade o exigente e estimulante objetivo de sermos contribuintes líquidos da UE. Gostamos de bater no peito – somos um país soberano, temos as fronteiras estabilizadas mais antigas da Europa!

É verdade, sim, mas só em parte. Já não basta esta submissão aos fundos europeus. Agora, à falta de iniciativa e estratégia nacional para resolvermos os problemas como o da habitação pedimos a Bruxelas.
Na última década foram produzidas pouco mais de 168 mil casas, em comparação com as duas décadas anteriores, em que foram construídas 1,1 milhões (1991 e 2000) e 980 mil entre 2001 e 2010. O resultado está à vista: uma terrível escassez de oferta e um rasto de medidas e anúncios governamentais sem fôlego ou pontaria. Deixámos crescer o problema durante dez anos. O drama rebentou-nos agora em cheio nas mãos. Solução: alô, Bruxelas? Nem o Eça imaginaria tão lastimável episódio.