A CIP remeteu à Assembleia da República, a sua Nota Crítica ao Projeto de Lei n.º 606/XIII/2.ª, que altera o regime jurídico aplicável à transmissão de empresa ou estabelecimento, procedendo à 13.ª alteração ao Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 7 de fevereiro, da autoria do Grupo Parlamentar do Partido Socialista.

A CIP, na supramencionada Nota Crítica, referiu, em síntese, o seguinte:

 

1.

O Projeto de Lei em referência visa proceder à 13.ª alteração ao Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.

O Código do Trabalho, desde a sua aprovação, em 2009, já sofreu 12 alterações ao seu regime.

Verifica-se, assim, que o referido Código foi objeto de mais de 1 alteração por ano.

A CIP, não obstante entender que os regimes jurídicos devem acompanhar a evolução das múltiplas dimensões da sociedade, considera que mudança constante dos regimes não confere ou permite a devida estabilidade dos “sistemas”, circunstância que condiciona o efeito útil dos mesmos.

 

2.

O Projeto de Lei em referência visa, em geral, alterar o regime jurídico relativo à transmissão de empresa ou estabelecimento, constante do Código do Trabalho em vigor, intentando proceder ao reforço das garantias dos trabalhadores, bem como clarificar e tornar mais transparente o processo de transmissão de estabelecimento, procedendo, para o efeito, à alteração dos artigos 285.º, 286.º e 498º do Código do Trabalho.

De acordo com o que se expressa na “Exposição de Motivos” do Projeto de Lei em análise, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista (doravante PS) suporta a apresentação do Projeto de Lei em referência com base em três argumentos:

  • Considera que o conceito de “unidade económica” em vigor “obriga a um juízo de discricionariedade que pode implicar decisões diferentes consoante o setor de atividade ou consoante a avaliação casuística que é feita.”, pelo que pretende densificar tal conceito.
  • Entende que é “essencial reforçar a responsabilidade solidária do transmitente, o seu dever de informação à tutela e correspondentes contraordenações por incumprimento destes deveres, evitando comportamentos fraudulentos por determinadas empresas e salvaguardando a estabilidade profissional dos seus trabalhadores.”.
  • Entende, ainda, que os trabalhadores devem ter “acesso a todo o conteúdo do contrato celebrado entre transmitente e adquirente.”.

Verifica-se, todavia, que as soluções legais que o PS projeta ao longo do respetivo articulado suscitam mais dúvidas que certezas e constituem obstáculos injustificáveis à transmissão da propriedade privada, à fluidez do comércio jurídico, à liberdade de circulação de pessoas e bens e à competitividade do nosso tecido produtivo.

Questiona-se, mesmo, se tais soluções não constituem um verdadeiro impedimento ao exercício do “Direito à livre iniciativa privada” e ao “Direito de propriedade privada”, mormente na parte que respeita à transmissão deste direito, que se encontram constitucionalmente garantidos nos artigos 61º e 62º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP).

 

3.

O quadro legal vigente em matéria de transmissão de empresa e estabelecimento resultou da transposição das Diretivas 77/187/CEE, de 14 de fevereiro, e 98/50/CE do Conselho, de 29 de junho, as quais foram, entretanto, revogadas, sendo a aproximação das legislações dos Estados membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos, atualmente regulada pela Diretiva nº 2001/23/CE, do Conselho, de 12 de Março (cfr. alínea l) do artigo 2º da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou a revisão do Código do Trabalho).

O mencionado quadro legal destina-se a estabelecer uma harmonização, ao nível da União Europeia, do patamar mínimo de direitos dos trabalhadores envolvidos em processos de fusões e aquisições de empresas, mormente em matéria de proteção das condições de trabalho e direitos dos trabalhadores envolvidos nesses processos, bem como no âmbito da informação e consulta.

Tal quadro não deixa, porém, de assegurar a liberdade do comércio jurídico relativamente aos negócios da empresa ou parte dela, no respeito pelos princípios, comunitário e constitucional, da livre iniciativa privada e do poder de organização empresarial.

A transposição das mencionadas Diretivas para o Ordenamento Jurídico Jus Laboral interno absorveu, ao longo dos tempos, todos aqueles vetores e os problemas suscitados ao nível interno têm sido dirimidos, até ao presente momento, pelas vias normais, inclusive as judiciais.

 

4.

Como se disse, o Projeto de Lei em apreço cria mais dúvidas do que certezas.

Desde logo, na densificação do conceito de “unidade económica” que intenta operar.

De acordo com o n.º 5 do artigo 285º do Código do Trabalho, “Considera-se unidade económica o conjunto de meios organizados com o objectivo de exercer uma actividade económica, principal ou acessória.”.

Este conceito encontra-se em linha com o previsto nas Diretivas acima citadas.

Tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 27 de Maio de 2004, e também por remissão para este último, no Acórdão de STJ 29 de Junho de 2005:

De acordo com a jurisprudência do TJCE, o critério fundamental para a aplicação da directiva comunitária nº 77/187 é o de saber se há uma entidade que desenvolve uma actividade económica de modo estável e se essa entidade, depois de mudar de titular (ainda que sem vínculo negocial entre o transmitente e o transmissário), manteve a sua identidade.

(…)

Vem-se contudo exigindo que a transferência deve ter por objecto uma entidade económica organizada de modo “estável”, ou seja, deve haver um conjunto de elementos que permitam a prossecução, de modo estável, de todas ou de parte das actividades da empresa cedente.

(…)

Por seu turno, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2002.10.30, considerou que por estabelecimento se deve entender “quer a organização afectada ao exercício de um comércio ou indústria, quer os “conjuntos subalternos”, que correspondem a uma unidade técnica de venda, de produção de bens, ou de fornecimento de serviços, desde que a unidade destacada do estabelecimento global seja dotada de uma autonomia técnico-organizativa própria, constituindo uma unidade produtiva autónoma, com organização específica”.

Finalmente, deve salientar-se que a directiva nº 2001/23/CE do Conselho de 12 de Março de 2001 (de publicação posterior à factualidade em análise nestes autos mas que espelha a orientação anterior do TJ perante a directiva nº 77/187), se refere expressamente, no seu art. 1º, al. b), que é considerada “transferência, na acepção da presente directiva, a transferência de uma entidade económica que mantém a sua identidade como um conjunto de meios organizados, com o objectivo de prosseguir uma actividade económica, seja ela essencial ou acessória”» (sublinhados e sombreado nossos).

Ora, a densificação do conceito de “unidade económica”, ora proposto pelo PS, acaba por distorcer este quadro, recorrendo a conceitos que, caso fossem aprovados, constituiriam obstáculos verdadeiramente intransponíveis à concretização de inúmeras transmissões que são hoje validamente aceites.

Ao intentar configurar tal conceito, no n.º 4 do artigo 285º do Código do Trabalho, na redação do artigo 2º do Projeto de Lei em apreço, como “o conjunto de meios organizados, dotada de autonomia técnico-organizativa, constituindo uma unidade produtiva autónoma com o objetivo de exercer uma atividade económica, principal ou acessória, de modo estável, mantendo identidade própria.” (sublinhado e sombreado nosso), o PS cria dificuldades interpretativas insuperáveis.

Desde logo, qual o sentido da expressão “unidade produtiva autónoma com o objetivo de exercer uma atividade económica” ?

Tal expressão parece indicar que todos os conjuntos de meios organizados que não produzem bens não poderão ser objeto de transmissão.

Impedir que outros tipos de unidades sejam objeto de transferência – sendo que hoje são perfeitamente transmissíveis – condená-las-á, não raro, à extinção, com a cessação de todos os postos de trabalho aí envolvidos.

Por outro lado, projeta-se alterar o n.º 5 do artigo 285º do Código do Trabalho, na redação do artigo 2º do PL em apreço, no seguinte sentido: “O transmitente responde solidariamente pelos créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, bem como pelos encargos sociais correspondentes, vencidos até à data da transmissão ou no ano subsequente.” (sublinhado e sombreado nossos).

Ora, o n.º 2 do artigo 285º do Código do Trabalho em vigor limita, quantitativa e temporalmente, tal responsabilidade solidária às “obrigações vencidas até à data da transmissão, durante o ano subsequente a esta.

E fá-lo em perfeita sintonia lógica com o prazo de prescrição previsto no n.º 1 do artigo 337º do Código do Trabalho: “O crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.”.

Ora, a alteração projetada no Projeto de Lei em apreço altera tais limites, quantitativa e temporalmente, colocando o transmitente solidariamente responsável pelos créditos em causa por um prazo que, por completo, passa a escapar-lhe, ou seja, até um ano a partir do dia seguinte em que tal contrato venha a cessar.

Um quadro de incerteza e violência jurídica que não obedecem a um mínimo de racionalidade.

Nesta perspetiva, projetada alteração é inaceitável.

Um outro aspeto pouco claro no Projeto de Lei em apreço, resulta da forma como o PS equaciona fazer operar a intervenção do “serviço competência inspetiva responsável pela área do emprego” nos processos de transmissão.

Assim, de acordo com o n.º 6 do artigo 285º do Código do Trabalho, na redação do artigo 2º do Projeto de Lei em apreço: “O transmitente deve informar o serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área do emprego: a) Do conteúdo do contrato entre transmitente e adquirente, sem prejuízo do disposto nos artigos 412.º 413.º; b) Havendo transmissão de uma unidade económica, de todos os elementos que a constituam nos termos do n.º 4.”.

Assim, desde logo, questiona-se:

Qual o motivo que levou os Autores do Projeto de Lei a não colocaram na alínea b) a salvaguarda dos artigos 412.º e 413.º do Código do Trabalho, formulada na alínea a) ?

Antevendo a manifesta confusão interpretativa que tais normas poderiam criar no espirito dos agentes, dificilmente se compreende que, à violação do supratranscrito n.º 6, se intente cometer uma violação grave, como se projeta fazer no n.º 10 do artigo 285º do Código do Trabalho, na redação do artigo 2º do Projeto de Lei em apreço.

O n.º 7 do artigo 285º do Código do Trabalho, na redação do artigo 2º do Projeto de Lei em apreço, é ainda mais misterioso.

Projeta-se, aí, que: “O disposto no número anterior aplica-se no caso de média ou grande empresa e, a pedido do serviço com competência inspetiva responsável pela área do emprego, em micro ou pequena empresa.” (sublinhado nosso).

Ora, sem saber do facto relativo à transmissão, como pode tal serviço solicitar algo que não conhece ?

 

5.

Em conclusão, o Projeto de Lei em apreço cria as maiores incerteza e insegurança jurídicas ao socorrer-se de conceitos vagos e indeterminados que em nada contribuem para as necessidades de clareza numa matéria fundamental à fluidez do comércio jurídico.

Perante este enquadramento, a CIP formula um juízo globalmente muito negativo, mesmo de frontal rejeição, de todo o Projeto de Lei em apreço, através do qual se atenta gravemente contra a propriedade privada, o comércio jurídico, a liberdade de circulação de pessoas e bens e a competitividade do nosso tecido produtivo.