Níveis de litígio fiscal registados em Portugal são, simultaneamente, causa e consequência desta falta de previsibilidade e de confiança.

Leia aqui o artigo de opinião desta semana assinado por António Saraiva na sua coluna semanal do Dinheiro Vivo, ao sábado.
Publicado no Dinheiro Vivo, edição de 27.07.2019

https://www.dinheirovivo.pt/opiniao/litigancia-fiscal/

A elevada tributação sobre as empresas não é o único fator que afeta a competitividade, no que diz respeito à fiscalidade. A falta de estabilidade e previsibilidade fiscal são, talvez, ainda mais relevantes, neste domínio, do que a excessiva carga fiscal.

A falta de confiança entre os contribuintes e o fisco é também fator que inquina um saudável relacionamento entre governantes e governados. A este propósito, não posso deixar de notar que a atual polémica em torno da exigência da entrega obrigatória do ficheiro de contabilidade à Autoridade Tributária reflete o baixo nível a que chegou a confiança recíproca entre o setor empresarial e a administração fiscal.

Os níveis de litígio fiscal registados em Portugal são, simultaneamente, causa e consequência desta falta de previsibilidade e de confiança. Ultrapassam em muito o que seria compatível com uma relação saudável com o fisco, bem como as próprias capacidades de resposta dos tribunais. A este respeito, uma das recomendações específicas para Portugal propostas pela Comissão Europeia é a de aumentar a eficácia dos tribunais administrativos e fiscais, em especial através da redução da duração dos processos. Isto devido aos desafios críticos enfrentados pelo sistema judicial, com processos morosos e um elevado número de processos em atraso, em especial nestes tribunais. Não poderia estar mais de acordo.

No entanto, não basta tratar os sintomas, é preciso cuidar das causas. Identifico duas, que importa corrigir:

Em primeiro lugar, o facto de não existir, na administração fiscal, interesse ou vontade para corrigir excessos cometidos em sede de inspeção, mas, pelo contrário, uma forte determinação na busca de pretextos para efetuar correções a favor do Estado. Para isso contribui, em muito, a forma como é exercida a avaliação do desempenho das estruturas da administração fiscal e dos seus agentes (com reflexos na atribuição de prémios). Isto leva a que cheguem aos tribunais inúmeros litígios com base em fundamentações que contrariam a jurisprudência dos tribunais, elevando o número de processos que se arrastam durante anos nos tribunais, com escassas probabilidades de êxito para a Autoridade Tributária.

Em segundo lugar, destaco o abuso do designado “direito circulatório”, ou seja, da interpretação dada à legislação por via de “ofícios circulados” emitidos pela Autoridade Tributária, que vinculam os seus agentes, mas não se impõem aos contribuintes nem aos tribunais. Também aqui se encontram exemplos de interpretações que ignoram a jurisprudência, alimentando uma litigância inútil. Gostaria de ver, nos programas eleitorais das diversas forças políticas, propostas que possam responder a estas questões, seja pela revisão da legislação, clarificando-a à luz da jurisprudência consolidada (como aliás foi feito, em sede de IRC, na reforma de 2013), seja pela alteração de práticas e procedimentos no seio da administração fiscal.

Evitar-se-ia, assim, um enorme desperdício de tempo e recursos à Autoridade Tributária, aos contribuintes e aos tribunais, gerar-se-ia uma maior certeza fiscal e mais confiança entre as empresas e o fisco. Todas as partes ganhariam.